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“Dois Irmãos” supera o desafio de adaptar um ótimo livro e voa alto na TV

Mauricio Stycer

09/01/2017 12h01

Como se sabe, quanto melhor o livro, mais difícil é fazer a sua adaptação para o cinema ou a televisão. Como honrar, em outra mídia, as qualidades da boa literatura? Esta é a primeira questão a observar em "Dois Irmãos", o grande romance de Milton Hatoum, publicado em 2000, que estreia nesta segunda-feira (09) como minissérie na Globo.

Os três primeiros capítulos, de um total de dez, foram colocados à disposição dos assinantes do aplicativo online da Globo nos primeiros dias do ano. Eles mostram que Luiz Fernando Carvalho, que desejava levar a obra para a TV havia anos, se saiu muito bem, mais uma vez, na tarefa.

O livro de Hatoum conta a história de uma família de imigrantes libaneses, estabelecida em Manaus desde a primeira metade do século 20. O muçulmano Halim é um mascate que se apaixona pela cristã Zana, filha do dono de uma pensão na cidade. Deste casamento pouco ortodoxo vão nascer os gêmeos Yakub e Omar e, posteriormente, Rânia.

Zana claramente tem preferência por um dos gêmeos, e este sentimento está na raiz dos desentendimentos e dramas que marcarão a vida dos dois garotos, em tudo diferentes.

Adotada pela família ainda criança, a índia Domingas é babá, empregada e faz-tudo em casa. Ela tem um filho, Nael, cujo pai é desconhecido. Cabe a Nael o papel de narrador da história. Suas lembranças e as histórias que ouviu, somados ao ressentimento pela condição de filho bastardo, dão o tom do romance.

O livro de Hatoum é muito forte, tanto na composição destes personagens, quanto na ambientação de Manaus e na descrição de fatos históricos que ocorrem em paralelo à tragédia familiar.

A adaptação do texto coube a Maria Camargo (entre o diretor e o autor na imagem ao lado). Ela respeita o livro, mas sem se submeter a ele. É reverente a Hatoum, mas busca o tempo todo uma forma de expressão capaz de prender a atenção de um espectador, não de um leitor.

Já Carvalho, como de hábito, se vale dos mais variados recursos para transformar a experiência do público em algo mais que a televisão costuma oferecer. O drama dos irmãos Yakub e Omar ganha tons operísticos, os planos cinematográficos provocam impacto e a trilha sonora é arrebatadora.

"Fiz questão de um diálogo com a literatura. É uma terceira linguagem. Este foi nosso grande desafio, não transformar a potência da linguagem do romance em uma mera adaptação", diz o diretor ao blog.

Dos atores, o diretor extrai desempenhos muito acima da média. Antonio Calloni, como Halim, é um espetáculo. Juliana Paes, tal como já havia ocorrido em "Meu Pedacinho de Chão", ganha a oportunidade, com Zana, de descolar a sua imagem de papéis óbvios. Matheus Abreu, no papel dos gêmeos ainda adolescentes, é surpreendente.

Estes três são os protagonistas destes primeiros episódios. Seus personagens serão vividos, mais para frente, por Antonio Fagundes, Eliane Giardini e Cauã Reymond. Nael é o papel de Irandhir Santos.


"É uma história sobre a finitude das coisas"

"A vida foi dando voltas, foi me cercando, me acuando… A vida é assim rapaz. A gente fica andando numa linha reta, de repente dá uma cambalhota e a linha dá um nó sem ponta", diz Halim a Nael no segundo capítulo, enquanto navega pelo rio Negro à procura de um dos gêmeos.

"É um drama forte, regado por humores da família. Um álbum de retratos de uma família que espelha o drama do próprio país. Pouco a pouco essas duas dimensões históricas vão se espelhando: a da família e a do país", diz Carvalho.

"Por isso, entendo o romance como um romance de formação, não apenas por contar o crescimento dos personagens principais desde sua infância, mas por mostrar de forma sensível a formação do próprio país: suas raízes indígenas, a importância dos imigrantes; enfim, a miscigenação toda que nos constitui".

O diretor prossegue, em breve depoimento ao blog: "É também uma história sobre a finitude das coisas, o cruzamentos dos afetos que resistiram ao tempo que, como um rio, não cansa de passar. Uma tentativa de narrar a memória e o tempo que passa como um personagem diante de tudo isso que já se foi".

E conclui: "Mas também compreendo como uma tentativa de refletir sobre a dramaturgia. Sobre que formas novas podemos contar histórias que permanecem essenciais."

"Dois Irmãos" vai ao ar de segunda à sexta por duas semanas. Pelo que vi, é um programa que merece toda a atenção. É a televisão aberta mostrando que pode ir além da obviedade e mediocridade.


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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

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