Mesmo irregular, “Justiça” é um dos grandes acontecimentos da TV em 2016
Mauricio Stycer
05/09/2016 05h01
Fãs de séries de qualidade, disponíveis na TV paga ou em serviços de streaming, certamente têm muitas restrições a fazer a "Justiça". Mas é preciso avaliar a minissérie dentro do meio em que está sendo apresentada – o da TV aberta brasileira. Neste contexto, exibidos os oito primeiros episódios, de um total de 20, é possível afirmar que se trata de um dos grandes acontecimentos de 2016.
É verdade que o texto de Manuela Dias é excessivamente didático e, por vezes, subestima o espectador ao "desenhar" alguns dramas. Para falar de racismo, mostrou que o único preso em uma blitz policial foi a jovem negra. Buscando enfatizar o desejo de vingança da professora de direito, exibiu a personagem armada na porta do presídio, mirando no assassino de sua filha.
Também chama a atenção a vontade de chocar o espectador a qualquer preço, sem que haja sustentação da história. É um encadeamento de drama atrás de drama de forma quase gratuita – uma receita que também fez o sucesso da novela "Verdades Secretas".
Falo, por exemplo, da cena em que o menino que não encontrava a mãe havia sete anos a assaltou, sem saber quem era. Ou da tentativa de suicídio da jovem que sofreu bullying virtual – uma situação complexa que, do início ao fim, consumiu apenas alguns poucos minutos da minissérie.
O cuidado com a encenação se estende aos mais variados detalhes – da fotografia à trilha sonora, passando pela edição e direção dos atores.
Longos planos sem cortes provocam o espectador habituado a uma linguagem visual mais simples. A câmera nunca está no lugar mais fácil e esperado. Recife é uma personagem importante da história e, como tal, é tratada, respeitando as suas diferentes "camadas".
O formato – quatro histórias independentes, mas interligadas por alguns personagens – repete um modelo já bastante visto em outras mídias. Não é nenhuma novidade. Mas não deixa de ser corajoso apresentar uma produção assim em um meio que quase sempre prefere o mais fácil e o óbvio.
Alguns temas, igualmente, fogem do óbvio e provocam o público. Talvez o mais ousado seja a intrigante relação da faxineira Fátima (Adriana Esteves) com o policial Douglas (Enrique Diaz), responsável pela ruína de sua família. Outro personagem interessante é Celso (Vladimir Brichta), que transita em todas as quatro histórias – ele é traficante de drogas, sócio de um prostíbulo, meio malandro, meio covarde.
A amizade de Débora (Luisa Arraes) com Rose (Jéssica Ellen), filha da empregada, não é um tema novo, mas está sendo apresentado de maneira complexa. A história de Antenor (Antonio Calloni), o empresário sem escrúpulos que resolve se aventurar pela política, é outro tema familiar, mas cuja atualidade justifica a sua inclusão na história.
Os dois primeiros episódios de "Justiça" estão entre os grandes momentos que vi na televisão em 2016. A minissérie não manteve a mesma qualidade na sequência, mas ainda assim, pensando na teledramaturgia exibida este ano pela Globo e suas concorrentes, está muito, mas muito mesmo, acima da média.
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Sobre o autor
Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).
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