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Memória: uma visita a Nilton Santos

Mauricio Stycer

27/11/2013 17h28

A notícia da morte de Nilton Santos, nesta quarta-feira (27), me lembrou, mais uma vez, do encontro que tive com o ex-jogador, já doente, em 7 de fevereiro de 2009. Autorizado por sua mulher, dona Célia, estive com ele na clínica onde estava internado desde janeiro de 2007. Abaixo o relato desta visita, publicado originalmente no site Último Segundo (não está disponível online).

RIO DE JANEIRO – O Engenhão recebe neste domingo Botafogo e Bangu, em partida válida pela quinta rodada do Campeonato Carioca. Uma partida menor diante do que acontecerá quinze minutos antes da bola rolar. Maria Célia de Albuquerque Santos receberá das mãos do presidente do Botafogo, Mauricio Assumpção, uma camisa comemorativa, criada em homenagem a Nilton Santos, a Enciclopédia do futebol.

Nenhum jogador é mais identificado com a história do Botafogo do que Nilton Santos. Ele estreou em 1948 e se aposentou em 1964 – época das maiores glórias do clube, num time em que também atuavam Garrincha, Didi, Zagallo e Amarildo, entre outros. Nunca atuou por outro clube. Jogou quatro Copas do Mundo pela seleção brasileira (reserva em 1950, titular em 1954, bicampeão mundial em 58 e 62).

Considerado o "inventor" da moderna forma de atuar na lateral, investindo em direção ao ataque, Nilton Santos figura em qualquer antologia de grandes craques do século 20. Também é um personagem típico da fase "romântica" do futebol: ao longo dos seus 16 anos no Botafogo, assinou inúmeros contratos em branco e, claro, não enriqueceu com o esporte.

Nilton Santos não vai comparecer à homenagem deste domingo no Engenhão. Desde janeiro de 2007, ele vive em uma clínica, na zona sul do Rio de Janeiro. Sofre do Mal de Alzheimer e enfrenta a perda progressiva da memória. No ano passado, enfrentou outros problemas de saúde, já superados – uma dengue hemorrágica e uma cirurgia na vesícula.

A reportagem visitou Nilton Santos neste sábado, véspera da homenagem no Engenhão. À porta do quarto onde vive, uma placa de madeira, assinada pelo ex-jogador, já avisa: "Seja bem vindo. Não fale mal do Botafogo". Sou recebido por dona Célia, casada com Nilton há 30 anos ("mais dez de rolo"). Sou apresentado a ele como jornalista, mas logo acrescento: "Sou botafoguense". Nilton Santos sorri e diz: "Soube escolher".

O quarto está cheio. Dois ex-jogadores, colegas de Botafogo do final da década de 50, estão presentes. Adalberto, goleiro do time campeão de 1957, e Cacá, lateral direito do time campeão de 1961. A conversa gira em torno do folclórico Paulo Amaral, então preparador físico da equipe (e da seleção brasileira).

"O Paulo Amaral esticava a corda, apertava demais", recorda-se Cacá. "E o apelido do Nilton, nessa época, era Chiado, porque ele chiava, reclamava", conta Adalberto.

Nilton acompanha as histórias e os causos com os olhos. Sorri nos momentos engraçados e faz cara de reprovação em outras passagens. "Não tinha nenhum padre naquele time", conta Cacá, que posteriormente atuou na Portuguesa, em São Paulo. "Todo mundo pintava e bordava. E o Paulo Amaral botava todo mundo pra treinar".

Nilton confirma e acrescenta: "A turma jogava baralho à noite". Cacá conta que num torneio no México, véspera da partida final, a jogatina no hotel do Botafogo começou às 10 da noite e prolongou-se até as 9 da manhã. "O jogo era meio-dia. Quando cheguei para o café da manhã, não achei ninguém. Estava todo mundo jogado cartas". A partida contra o América do México foi vencida por 2 a 1 – mas no sufoco. "Nos últimos 10 minutos, ninguém agüentava mais correr. Ficou o Manga no meio do gol, eu encostei na trave direita, o Nilton na trave esquerda e eles ficaram bombardeando", conta Cacá.

Nilton folheia a biografia de Quarentinha, "O Artilheiro Que Não Sorria", de Rafael Casé, recém-lançada. Maior artilheiro da história do Botafogo, Quarentinha dizia que não comemorava seus gols porque apenas cumpria a sua obrigação ao marcá-los. Nilton silencia quando Adalberto começa a contar uma história.

"O Quarenta era difícil. Era da boemia. Uma vez teve uma discussão dele com o Zagallo dentro do ônibus. 'Você não joga nada', disse o Quarenta. 'Não jogo nada, mas tenho dinheiro no bolso', respondeu o Zagallo. Muita gente tinha bronca porque o Zagallo chegou no Botafogo ganhando um salário mais alto", encerra Adalberto.

Digo a Nilton Santos que nunca tive o privilégio de vê-lo jogar, mas me recordo do dia em que, em 1974, então assessor técnico do Botafogo, irritou-se com Armando Marques, por conta da sua arbitragem num jogo contra o Atlético (MG), e deu um soco no árbitro, que caiu pela escada no túnel do Maracanã. Nilton Santos sorri e fala:

"Todo mundo tinha vontade de bater nele. 'Deixa eu te dar um abraço. Eu queria muito fazer o que você fez'. Onde eu ia, depois, as pessoas vinham me cumprimentar", conta, com um sorriso maroto.

Dificuldades e apoio do Botafogo

A camisa comemorativa de Nilton Santos é uma criação da grife Estilo Carioca, de Flavio Ferreira Lopes. É uma réplica da camisa usada pelo Botafogo na conquista do bicampeonato Carioca, em 1962, em cima do Flamengo. Vai custar R$ 99 – e 20% do valor de cada unidade vendida será revertido para Nilton (os 10% de royalties a que tem direito, mais 10% do Botafogo, que cedeu sua parte para o ex-jogador).

"Já tenho pedido de 5 mil unidades", diz Flavio. A camisa é em algodão, com o escudo e o número 6, às costas, bordados, como antigamente. Junto ao peito, vem um autógrafo de Nilton Santos. Curiosamente, a faixa central da camisa é branca – foi um ano especial, raro, em que isso ocorreu, pois o estatuto do Botafogo determina que a faixa central seja preta.

Todas as despesas de Nilton Santos na clínica onde está internado há dois anos correm por conta do Botafogo. Compromisso original do ex-presidente Bebeto de Freitas, foi mantido pelo atual, Mauricio Assumpção.

Outras "ações de reconhecimento", como define Paulo Kleinberger, presidente da ComFogo, estão sendo articuladas. Kleinberger criou um fundo com 30 cotistas para dar um apoio permanente ao ex-jogador. "A gente tem que valorizar os nossos ídolos", explica, durante visita a Nilton Santos.

Dona Célia chama a atenção para duas gravuras de madeira penduradas nas paredes do quarto. São obra de Nilton. "Tem 200 anos que eu parei de fazer", ele diz, cortando o assunto. A conversa então volta-se para a casa em Araruama, onde o casal vivia. É um momento tocante da visita.

"Tenho vontade de ir lá", diz o ex-jogador.

"Quer mesmo?", pergunta Célia. "Se você quiser, eu te levo", ela diz.

"Quero ver se o cachorro ainda me reconhece", diz Nilton.

Chama-se Poti, diz Célia. "É o nosso filho, que a gente pegou na rua para criar".

A visita está terminando. Nilton está cansado. Antes de ir embora, Adalberto, o goleiro de 1957, resume a história:

"Tudo o que fizerem para o Nilton é pouco. Em relação ao que ele fez, tudo o que fizerem é pouco".

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.


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