A década em que viramos voyeurs e juízes da vida alheia
Mauricio Stycer
10/12/2010 08h08
Eis a receita, simplificada, de um reality show. Não é uma invenção do século 21, longe disso, mas se tornou uma mania mundial na década que se encerra, graças à popularização de dois programas exibidos nos Estados Unidos em 2000, "Survivor" e "Big Brother".
No Brasil, "Survivor" virou "No Limite". Sua primeira edição estreou em julho de 2000 e foi vencida pela cabeleireira Elaine (em pé, na foto acima). Em sua aclimatação aos trópicos, "Big Brother" estreou em janeiro de 2002 com um terceiro "B", de Brasil", no título.
"Acho absurdo dizerem que não posso pôr pessoas dentro de uma casa e filmar seu dia-a-dia. Seria o mesmo que dizer que só pode haver um show de auditório porque alguém fez isso primeiro", disse Silvio Santos na ocasião.
A Globo enfrentou acusação semelhante com seu "No Limite" e se defendeu com argumentos parecidos aos usados pelo dono do SBT. "Não copiamos os norte-americanos. Só seguimos a tendência mundial de fazer programas desse estilo", disse, então, o diretor do programa brasileiro, José Bonifácio de Oliveira, o Boninho.
Na porteira aberta por estes três programas, passou uma verdadeira boiada. Só em 2010, para citar programas com algumas destas características exibidos na tevê aberta, a lista inclui: "BBB10", "Aprendiz", "Ídolos", "Troca de Família", "A Fazenda 3", "Esquadrão da Moda", "Busão do Brasil", "Hipertensão", "Solitários", "Dr. Hollywood".
O que explica o sucesso, a permanência e a repetição deste tipo de programa na tevê? Em primeiro lugar, é preciso insistir que não se trata de um fenômeno brasileiro, mas global. Dois fatores, na minha visão, ajudam a entender o fascínio pelo reality show.
Alguém lembrará que os participantes criam "personagens" dentro do confinamento. É verdade. De forma consciente, ou não, Kleber Bambam (ao lado) fez isso já na primeira edição do BBB. Mas não importa. O que interessa ao público é ter a percepção que está espiando a intimidade de alguém de carne e osso, seja ele autêntico ou não.
E aí entra o segundo fator que, acredito, justifica a permanência desta família de programas na televisão – a possibilidade de julgar o outro. Os diferentes instrumentos de interação, explorados de forma cada vez mais eficiente, estimulam o público a agir como juízes do caráter, da moral e da ética alheia.
Como se sabe, um falso espelho permite às emissoras filmarem os participantes. Graças a ele, podemos ver sem sermos vistos, mas é impossível não pensar que, no fundo, estamos nos vendo ali.
Sobre o autor
Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).
Contato: mauriciostycer@uol.com.br
Sobre o blog
Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.