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Filme reconstitui baixaria de Chacrinha que entrou para a história da TV

Mauricio Stycer

12/11/2018 05h01


Há várias boas razões para assistir "Chacrinha, o Velho Guerreiro", de Andrucha Waddington, atualmente em cartaz. O filme está longe de ser uma biografia chapa-branca ou uma "homenagem" ao Velho Guerreiro. Ao contrário, expõe vários aspectos pouco edificantes tanto de Abelardo Barbosa quanto do personagem que entrou para a história da televisão – ele é um péssimo pai, mau marido, trata mal os subordinados e esbanja insegurança nos bastidores.

Além de Stepan Nercessian, que já "incorporou" o Velho Guerreiro, Eduardo Sterblitch se sai muito bem ao viver Chacrinha mais jovem. Gianne Albertoni como Elke Maravilha é uma ótima surpresa. Entre outros achados, Criolo faz uma participação como calouro do programa de auditório e interpreta "Eu Vou Tirar Você desse Lugar", de Odair José.

Muito bem conduzido por Andrucha, o filme tem roteiro de Claudio Paiva, que toma várias liberdades, mas evita o didatismo e oferece ao espectador um retrato rico e multifacetado do personagem.

Um episódio crucial da história da televisão é mostrado logo na primeira cena do filme: a apresentação da médium Cacilda de Assis, que incorporava o espírito de Seu Sete da Lira, no auditório do Velho Guerreiro. O seu ritual causou tanto impacto que algumas chacretes chegaram a passar mal.

Fumando charuto e bebendo cachaça direto da garrafa, Cacilda de Assis conseguiu a proeza de aparecer naquela mesma noite de domingo, em 29 de agosto de 1971, no palco do programa de Chacrinha, na Globo, e no de Flavio Cavalcanti, na Tupi. Ambos disputavam ferozmente audiência e eram exibidos ao vivo (a imagem ao lado mostra a médium diante de Flavio).

O filme não desenvolve as consequências do episódio, mas ele causou impressão tão ruim que o Departamento de Censura da Guanabara pediu a suspensão dos dois programas por oito dias, argumentando que ambos exibiram "um show de baixo espiritismo explorando a crendice popular e favorecendo a propaganda do charlatanismo".

Walter Clark, pela Globo, e José Almeida de Castro, pela Tupi, se anteciparam às represálias e assinaram um protocolo de conduta, se comprometendo a não mais exibir baixarias do tipo. Entre outros tópicos, o documento observava que as duas emissoras não mais promoveriam, "sob qualquer forma ou pretexto, a miséria, a desgraça, a degradação e as tragédias humanas".

O filme atribui a esta história a saída de Chacrinha da Globo, o que é incorreto. O apresentador já estava tendo desentendimentos com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, naquela ocasião, mas o rompimento do contrato só ocorreu mais de um ano depois, em dezembro de 1972.

Sem respeitar as ordens de Boni, Chacrinha seguidamente atrasava o término do programa. Num determinado domingo, exibiu uma entrevista com Juca Chaves, que disse: "A televisão não paga bem a ninguém e como eu não estou aqui para me aborrecer, vou embora", protestou o artista.

Irritado, Boni pediu para o programa ser encerrado, mas Chacrinha ignorou a ordem e continuou no ar além do tempo previsto. O diretor da Globo, então, ordenou que um técnico concluísse a transmissão (no filme, é o próprio executivo que "desliga" um botão e tira Chacrinha de cena). Naquela noite, segundo consta, o Velho Guerreiro quebrou o seu camarim e deixou a emissora aos gritos com Boni. Só regressou dez anos depois.

Assim como ocorreu no musical dedicado a Chacrinha, no qual deu palpites sobre o roteiro, Boni também se envolveu na realização do filme – é produtor associado, além de personagem, vivido por Thelmo Fernandes.

Para quem quiser saber mais sobre as tretas de Chacrinha com Flavio Cavalcanti e com Boni, cito quatro livros que tratam dos episódios mencionados neste texto: "História da Televisão no Brasil" (Contexto), de Ana Paula Goulart Ribeiro, Igor Sacramento e Marco Roxo, "Chacrinha, a Biografia (Casa da Palavra), de Denilson Monteiro, "O Livro do Boni" (Casa da Palavra), de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, e "Um Instante, Maestro!" (Record), de Léa Penteado.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

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