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“Não tenho regras e não acredito nelas”, diz o diretor de “Dois Irmãos”

Mauricio Stycer

20/01/2017 04h01

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Vai ao ar nesta sexta-feira (20) o último capítulo da minissérie "Dois Irmãos", o primeiro grande acontecimento do ano na TV aberta brasileira. O romance de Milton Hatoum, na Globo, ganhou contornos épicos, valorizado pela direção sempre muito marcante de Luiz Fernando Carvalho.

LuizFernandoCarvalho2014Houve críticas, como sempre, ao estilo do diretor (na foto, em Manaus, durante as gravações). Optando por um tom quase operístico, barroco, em oposição ao realismo/naturalismo da maior parte das produções para a TV, Carvalho incomoda parte dos espectadores. "Quem criou a lei de que brasileiro só gosta de comédia rasteira?", pergunta. "É possível elevar o nível da TV aberta", diz ele.

Nesta entrevista, realizada numa troca de emails, ele justifica o seu estilo e explica os objetivos do seu trabalho. "Não tenho regras, não acredito nelas", ele diz. É quase um desabafo – longo, mas articulado – contra quem liga a televisão na expectativa de ver sempre as mesmas coisas. "Não acredito na meia dúzia de regrinhas consagradas pelo mercado", resume Carvalho. Recomendo muito a leitura.

Você ficou satisfeito com o resultado final? Acha que alcançou o que esperava? O que mais te agradou? O que não conseguiu fazer?
Meu trabalho nunca termina. Sempre tenho a sensação de que preciso fazer um outro, e mais outro e outro, para dar conta do que sinto, não exatamente sobre aquele tema, mas sobre a vida em geral que permeia todo e qualquer trabalho. Essa espécie de insatisfação é que diz: continue! Ninguém mais. É uma busca. Nunca trabalho correndo atrás de resultados imediatos. Em "Dois Irmãos", minha intenção foi entrar na obra como um leitor, extraindo dela uma espécie de síntese daquilo que o Milton (Hatoum) quis dizer e, somando-se a isso, claro, meu olhar, minha reflexão.

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Já te respondendo mais objetivamente, "Dois Irmãos" é uma vitória da TV! Nos dias de hoje, onde cada vez menos se vê conteúdos com uma linguagem que dialoga com a alta literatura encontrando espaço, onde um gênero pouco tracejado como a tragédia familiar e a finitude das coisas encontra lugar na grade, onde tudo isso é praticamente inexistente, e, mesmo assim, conseguirmos um boa audiência e uma excelente repercussão, não posso entender de outra forma senão a de que, sim, é possível elevar o nível dos conteúdos da TV aberta.

Sou herdeiro de uma geração de diretores que me ensinou a não dar exatamente o que a audiência pede – infelizmente ela é movida pela indústria mais rasa de consumo, pela precariedade do ensino, pelo abandono de setores ligados à cultura, pela quase nula formação da população, e por aí vai-se… Precisamos oferecer algo que desestabilize esse modelo hegemônico, acachapante, e nos permita existir também. Uma coisa não tira o lugar da outra, basta que haja um equilíbrio e estes modelos coexistirão perfeitamente.

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Afinal, quem criou a lei de que brasileiro só gosta de comédia rasteira e não responde a conteúdos mais densos e reflexivos? Quem nos empurra estas fórmulas goela abaixo senão nós mesmos? Mas alguém nos condicionou a isso! Onde foram parar Osman Lins, Clarice, Campos de Carvalho, Miguel Sanches Neto, José Lins, Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Lúcio Cardoso….e centenas de fabuladores incríveis, cheios de história, emoções e brasilidade? Onde? Só trago perguntas. Me debato com centenas delas e muitas continuam sem respostas, por isso continuo. Meus mestres ecoam na minha cabeça: emocione! Eduque! Mesmo que o público não saiba exatamente o por quê, espargindo dúvidas no ar.

Tenho total consciência que este é um caminho de muito risco em se tratando de uma grande indústria de entretenimento. Mas, deste modo, como acontece agora em "Dois Irmãos", que cumpre sua missão maior, que é de oferecer ao povo não apenas o que o mercado reverencia como consagração imediata, mas, na contramão de modelos relambidos, a TV assumiu a coragem de oferecer um conteúdo que, além de emocionar, desperte as pessoas, que as faça pensar, por que não?, fazer perguntas….

Ou você acha que eu não tenho consciência que a imensa parte da população não sabe o que foi o AI-5? Claro que não sabe! Mas eu não deixarei de fora. Acredito que no dia seguinte (ao capítulo da minissérie que tratou do assunto), uma parte desta audiência perguntou aos professores, amigos ou parentes, o que quer dizer AI-5. É isso! É preciso levantar a viga! "Dois Irmãos" alia estas questões. O projeto Assista a esse Livro é a prova de que a missão da qual falo é possível na TV aberta. É alta literatura. Paralelamente à fabulação, se contam os processos sociais, históricos e políticos do país, atravessando praticamente um século. Isso é informação relevante, é cultura, é educação formal e informal ao mesmo tempo, nos educa através das emoções de uma história vinda da nossa melhor literatura.

"Dois Irmãos" registrou uma boa audiência, média de 21 pontos em São Paulo nos primeiros oito capítulos, mas um pouco inferior à alcançada, na primeira semana de janeiro, pela minissérie baseada no filme "Aldo – Mais forte que o mundo". Como você vê essa questão?
Não devemos comparar "Aldo" com "Dois Irmãos". Certamente são públicos diferentes. A performance média entre um e outro é muito próxima, o que quer dizer que há lugar para os dois conteúdos. Mas é inevitável dizer que um, apesar de ser um drama, trata de um esporte e de seu ídolo extremamente popular; enquanto o outro é uma literatura do Milton Hatoum, abordando a decadência de uma família e, consequentemente, do país. No meu modo de ver, a TV é que saiu ganhando.

Ouvi reclamações sobre o áudio, além de críticas à falta de legendas nas muitas falas em árabe.
Quanto ao áudio, esta é uma questão que luto sempre e que todos os realizadores sofrem. Há uma lei, que surgiu no Congresso norte americano faz décadas, uma vez que os comerciais de TV de lá estavam apelando no volume para ganhar da concorrência. Em função disso foi criado um modelo de transmissão que contém o áudio em um determinado limite padrão determinado por eles. E isso vale para o mundo todo. Se uma TV brasileira exceder a este limite, será multada (em tudo se luta contra um modelo, vês?!).

Quando, como em "Dois Irmãos", um conteúdo trabalha com grande modulação de áudio, com grandes silêncios alternando com picos de som, detalhes de ruídos, etc…, enfim, esta modulação fora do comum e longe de um certo desenho de som médio que, por exemplo, as cenas de estúdios produzem e propiciam, tais conteúdos como "Dois Irmãos" e outras séries com um número grande de cenas gravadas em externas e desenho de som fora da "normalidade", sofrem bastante.

Digamos que se trata de uma lei que favorece os comerciais, mas que causa um estrago na ficção. Tecnicamente falando, todo o som passa por uma espécie de compressor. A ficção precisa se libertar disso. Comercial é uma coisa, ficção demanda um desenho de som artístico, com modulações, atmosfera, diferentes emissões de cada personagem, etc. Isso me parece óbvio. Sem falar que, na Globoplay a questão me parece ainda mais frágil. Por se tratar de um servidor, quanto maior o número de acessos, maior a compressão: o conteúdo trava, sai de sincronia. Estamos à mercê de um tempo de transição, mas acredito que tudo melhora se os conteúdos exigirem um avanço. Este avanço vem! Mas se tudo for médio, ele não virá, e tudo continuará "ótimo!"

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Quanto ao idioma libanês, optamos por não inserir legendas, pois não se tratavam de falas, ou diálogo, mas apenas expressões que traziam verossimilhança à cultura libanesa, mais um elemento que dava sabor à linguagem e não propriamente à fala. No DVD certamente teremos a opção de legendas, tecnologia impossível na TV, escolher assistir com ou sem legenda.

Essa é difícil. Quais foram, na sua opinião, os maiores destaques no elenco?
Sinceramente, o maior destaque foi o conjunto, a unidade de interpretação entre todos. Calloni, Juliana, Fagundes, Eliane, Cauã, os lançamentos todos, um a um, todos chegaram lá. Esta é a mensagem de "Dois Irmãos" enquanto projeto: artistas genuínos! São eles o elemento vivo que imanta tudo: figurino, luz, cenários… Foram eles que deram verdade ao sobrado, às caracterizações, a tudo que os cercava.

doisirmaoselianegiardini3Como ontem (18) após o capítulo me disse o Milton Hatoum: "Monstros! Que dimensão alcançada pela Eliane Giardini!" No meu modo de sentir, uma rainha em seu ofício. Eliane foi de uma excelência e de uma inteligência imensa ao abordar seu percurso dramático. Impressionante. É incomum no Brasil, em qualquer país, pera lá! É preciso que se diga isso. As pessoas ficam privilegiando atrizes estrangeiras, aplaudindo premiações lá e acolá, pelo amor de Deus, gritem: Eliane Giardini! Estamos falando de uma dimensão rara em qualquer campo, seja na TV, teatro ou cinema. Eliane venceu o desafio de fazer a Zana, este personagem mítico, acrescentando a ele aqueles olhos, aquele temperamento dilacerante do trágico. Claro que há a minha preparação, mas jogo é jogo!

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Fagundes é o Rei. Seu Halim emociona a todo instante. É o próprio tempo que escoa em seu olhar, as eras e os sonhos que se vão. Só um grande ator como ele seria capaz de passar tudo através do mínimo. E pensar que em seus últimos personagens teve a coragem de ser desde o clown em "Meu Pedacinho de Chão", passando pelo "Trump" em "Velho Chico" e agora o metafísico Halim, este personagem que é em si a memória de tudo. Que processo interno corajoso do próprio Fagundes, expondo, dia a dia, a profundeza de sua sensibilidade à todos nós! Halim é Fagundes, Fagundes é Halim!

E tudo gravado tão rápido. As pessoas pensam que levamos meses e meses gravando. Imagina! Em função de tantas circunstâncias, da luz que eu queria pegar no interior do sobrado, em função da liberação de alguns atores para as novelas, tínhamos, no máximo, cinco horas de gravação por dia. Era muito intenso.

O que falar de Juliana Paes? Uma nova atriz! Um novo patamar! Onde antes se via uma mulher linda, pode-se ver agora uma grande atriz no corpo de uma mulher linda. Assim sua sensualidade natural fica a serviço da personagem e não ao contrário.

doisirmaosirandhir2Também não tenho palavras para Irandhir Santos e seu Nael. Um personagem praticamente sem texto, pouquíssimas palavras, mas repleto de gritos no espírito. Nael é a metáfora do povo brasileiro. Seria "o primeiro brasileiro", aquele miscigenado, filho do cruzamento da raiz indígena com a imigração árabe. Nael é o amanhã, somos todos nós, aquele que vencerá a polaridade mesquinha que nos afoga no presente. Esta é a sua mensagem final. Debaixo de um sorriso — seu único sorriso em toda a série — ele atravessará o encontro das águas do rio Negro e o Solimões, que não se misturam, guiado pelos ensinamentos de Halim.

Mas o maior desafio, lógico, foi mesmo cair nas mãos do Cauã. Ele conseguiu! Esta é a maior avaliação que eu poderia dizer a um intérprete: você conseguiu, você conseguiu, você conseguiu! Cauã me enche de orgulho assim como todos, mas só ele atravessou de um extremo ao outro os limites do humano, foi Deus e Demônio, Sombra e Luz. Bravo!

A adaptação de obras literárias, uma marca em sua carreira, demanda um esforço extra, imagino. O projeto segue firme? Qual vai ser o próximo?
Ainda estou muito colado a "Dois Irmãos". Mas, por outro lado, continuo não apostando em coisa alguma que me cheire à repetição. Tento escapar de mim o tempo todo. Se continuo alguma coisa é o cotejo com a dúvida. Não tenho regras, não acredito nelas, meus trabalhos costumam ser diametralmente opostos um do outro e nem eu mesmo sei te responder exatamente o motivo: "Os Maias", "Suburbia", "Lavoura Arcaica", "Hoje é dia de Maria", "Afinal o que querem as mulheres?", "Velho Chico", "Capitu", "Correio Feminino", "Dois Irmãos"…

É claro que há de haver uma convergência misteriosa entre eles, mas cada um deles trabalha a partir da negação do outro. Me pergunto se deveria seguir um modelo, mas essa resposta não me cabe mais. Sou refém de mim mesmo, de minhas percepções sobre o mundo. Respondo tudo isso em uma única palavra: maturidade. Não acredito na meia dúzia de regrinhas consagradas pelo mercado ou qualquer coisa que me soe como verdade absoluta.

Trabalho com a tela em branco. O que evoco são acontecimentos que estão além de mim mesmo, da minha compreensão, além dos intérpretes e de toda equipe. Lembro o poeta Jorge de Lima: "como conhecer as coisas senão sendo-as?". Lembro de Laval, um dos personagens mais contundentes do romance, aquele professor que amávamos e que não encontramos mais facilmente por aí. Lembro do amigo e mestre Ariano Suassuna, que era um Laval a seu modo, e tantos outros. Quem? Quem estaria, nos dias de hoje, disposto a encarnar os sonhos em sua fala quixotesca? Quem?

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

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Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.