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A roqueira e o fotógrafo: uma história de amor

Mauricio Stycer

14/12/2010 10h26

Trilha especial para ler este texto, criada pela Rádio UOL: clique aqui.

Ganhador de um dos mais respeitados prêmios literários dos Estados Unidos, "Só Garotos" é uma jóia rara na categoria de "não-ficção". Sob o pretexto de reconstituir os anos de formação da roqueira Patti Smith e do fotógrafo Robert Mapplethorpe (1946-1989), o livro trata, na verdade, de expor uma delicada história de amor, amizade e cumplicidade. Mesmo que você não os conheça ou não tenha apreço maior pelo trabalho deles, vai se encantar com a leitura.

Fã de Rimbaud e Bob Dylan, Patti Smith influenciou uma geração de roqueiros, de Bono Vox a Michael Stipe, em especial com o impressionante "Horses", seu disco de estreia, lançado em 1975. A capa do LP traz a artista numa das poses mais famosas do mundo do rock – de camisa branca, com o casaco jogado sobre o ombro, cabelo não muito longo, olhar superior, quase um rapaz.

A história de como Mapplethorpe fez esta foto é uma das últimas que Patti Smith conta em "Só Garotos". O livro acaba justamente antes dos dois ficarem famosos, um pouco como Bob Dylan fez no seu "Crônicas – Volume Um".

De forma cronológica, Patti Smith descreve o encontro acidental de dois jovens que sonhavam ser artistas, totalmente perdidos, em Nova York, no final dos anos 60. E como, graças a relação especial que estabeleceram, acabaram descobrindo como canalizar as respectivas energias criativas.

No caso de Mapplethorpe, o período de formação inclui também a descoberta da própria homossexualidade e o esforço para "sair do armário" num ambiente carregado de preconceito.

O fotógrafo, que se tornaria famoso por suas imagens de corpos masculinos nus, e que causaria polêmica com a documentação do universo sado-masoquista, sonhava ser artista plástico ao chegar a Nova York. Patti Smith gostava de literatura, escrevia poemas, fez colagens e se arriscou até como atriz nos seus anos iniciais na cidade.

Com pouquíssimo dinheiro, ambos dividiam tudo. Na fase mais dura, quando queriam ver alguma exposição, apenas um entrava no museu e, na volta, contava o que viu para o outro. Mapplethorpe chegou a se prostituir para conseguir algum dinheiro.

O casal morou por algum tempo no Chelsea Hotel, célebre por abrigar artistas iniciantes, em final de carreira ou, simplesmente, sem dinheiro algum. Lá Patti Smith conheceu vários de seus heróis, como William Burroughs, Allen Ginsberg, Janis Joplin, Jimi Hendrix, entre outros. Aproximou-se do círculo de Andy Warhol. Teve um caso com Sam Shepard e chegou a escrever uma peça em parceria com o dramaturgo.

"Só Garotos" acaba sendo, também, uma descrição desta cena nova-iorquina – um período de muitas descobertas, por causa das drogas, liberdade sexual e loucura. Patti Smith fala de dezenas de pessoas, talentosas, que ficaram pelo caminho. Ela se considera uma "sobrevivente" – e, no fundo, o relato do seu livro é também uma homenagem a estes artistas, em primeiro lugar a Mapplethorpe, morto em consequência da Aids.

A surpresa maior do livro é o tom que Patti Smith encontra para narrar todas estas histórias. Sem se vangloriar de seus feitos, honesta ao falar da sua falta de sensibilidade em alguns episódios incríveis que viveu, generosa ao dividir os holofotes com Mapplethorpe, a roqueira olha para trás com carinho e sensibilidade.

Ao receber o National Book Awards, agora em novembro, Patti Smith lembrou o seu primeiro emprego em Nova York, no final dos anos 60, como vendedora de livraria: "Sempre sonhei em escrever um livro. Quando eu desempacotava os vencedores do National Book Awards e os colocava nas estantes, imaginava como iria me sentir se ganhasse o prêmio".

Tomara que "Só Garotos" (Companhia das Letras, 278 págs., R$ 39) seja só o primeiro capítulo da história.

Em tempo: A Rádio UOL produziu uma playlist especial com grandes momentos da pioneira do punk e do rock alternativo, do clássico "Horses"  aos dias atuais. Pode ser ouvida aqui

Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.