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Órfãos da Terra compensa história frágil com belo discurso sobre tolerância

Mauricio Stycer

27/09/2019 19h09

Refugiados reais que aparecem na abertura de "Órfãos da Terra"

Num mundo em conflito, marcado por polarização política, radicalização religiosa e preconceitos morais de todos os tipos, "Órfãos da Terra" investiu numa verdadeira utopia. E se fosse possível deixar a intolerância de lado e respeitar o próximo exatamente como ele é?

Thelma Guedes e Duca Rachid (imagem ao lado) se dedicaram, ao longo de 154 capítulos, a apresentar situações críticas e propor soluções a diferentes grupos que sofrem por causa da intolerância.

O tema principal, o drama de refugiados de guerra da Síria, logo se expandiu. Em torno do centro comandado por um padre progressista e humanista, Zoran (Angelo Coimbra), outros expatriados, da África e da América do Sul, encontraram guarida para reunir forças e seguir novos caminhos no Brasil. O apelo por solidariedade e empatia foi insistentemente apresentado como uma necessidade de primeira ordem.

Outro assunto muito bem desenvolvido foi o da relação entre árabes e judeus. Em tom cômico, um casal de netos de imigrantes foi formado entre a judia Sara (Veronica Debom) e o árabe Ali (Mouhamed Harfouch), além de todo um entorno de parentes dos dois lados.

Mais interessante ainda, os dois idosos que representavam as comunidades, o árabe Mamede (Flavio Migliaccio) e o judeu Boris (Osmar Prado), se tornaram amigos e cúmplices num momento de dor – a doença do primeiro.

Flavio Migliaccio (Mamede) e Osmar Prado (Boris) proporcionaram momentos emocionantes na novela

As autoras foram muito felizes na forma como mostraram o desenvolvimento dos traços de Alzheimer em Mamede e reforçaram a necessidade de apoio ao idoso nesta situação. As cenas de Migliaccio e Prado nas últimas semanas foram lindas, de partir o coração.

"Órfãos da Terra" também tratou de machismo de uma forma inteligente. Numa novela que já havia exibido um casal formado por um homem mais velho e uma mulher bem mais nova, as autoras propuseram a situação inversa – uma mulher mais velha e um garoto.

O mundo desabou sobre Letícia (Paula Burlamaqui) e Benjamim (Filipe Bragança) de uma forma que não havia desabado sobre Norberto (Guilherme Fontes) e Valéria (Bia Arantes), obrigando o espectador a ver que as situações eram idênticas.

Aline (Simone Gutierrez), mãe de Benjamim, foi usada para discutir a questão da diferença de idades. Ela também foi útil para as autoras defenderam a importância da adoção, em algumas situações. Sem conseguir engravidar novamente, e ter uma menina, seu sonho, Aline acabou entendendo que tinha outras opções.

Cibele (Guilhermina Libanio) permitiu às autoras tratar de outro tema importante, a autoestima e autoimagem corporal. Bem-resolvida e feliz, a menina esbanjou inteligência e sabedoria na trama. Neta de uma família de imigrantes árabes, sofreu com a morte do namorado judeu, que estava servindo ao Exército em Israel.

A conciliação de opostos também foi tema do casal formado por Laila (Julia Dalavia) e Jamil (Renato Goes). Ambos árabes, mas ela cristã e ele muçulmano. Cada um com a sua fé e a tarefa de educar uma criança sem forçar a religião de um ou de outro. E do casal formado no final entre o vilão Fauze (o sírio Kaysar Dadour, uma surpresa) e a empregada fofoqueira Santinha (Cristiane Amorim).

No penúltimo capítulo, finalmente, a Globo autorizou o beijo entre Valéria (Bia Arantes) e Camila (Anaju Dorigon)

Por fim, mas não menos importante, com Valeria (Bia Abrantes) e Camila (Anajú Dorigon), a novela tratou do amor entre duas mulheres. Mostrando como o assunto ainda incomoda, no mesmo dia em que criticou Crivella por censurar uma HQ na Bienal, a Globo vetou a exibição de um beijo entre as duas personagens. Ao final, acabou cedendo e autorizando, no penúltimo capítulo, que os fãs visses as duas se beijando.

A apresentação destas situações todas não me soou forçada em momento algum. O problema de "Órfãos da Terra" é que a história sobre a qual todos estes dramas se assentarem era muito frágil.

Tudo girou em torno do desejo de vingança dos vilões contra o casal principal. Mas Laila e Jamil praticamente não tiveram função na trama. E o vilão maior, Aziz (Herson Capri), morreu cedo demais, deixando a tarefa de estabelecer conflitos para sua filha, a terrível Dalila (Alice Wegmann). Obcecada em vingar a morte do pai, a vilã de desenho animado passou uma centena de capítulos tramando, sem sucesso, matar Laila. Foi muito chato.

Um registro sobre quatro grandes atores do elenco que podiam ter sido mais bem aproveitados. Os pais de Laila, Missade (Ana Cecília Costa) e Elias (Marco Ricca) passaram a novela inteira em crise conjugal, entre idas e vindas. Já Rania (Eliane Giardini) e Miguel (Paulo Betti), as principais referências do clã árabe, não mereceram maior atenção das autoras.

"Órfãos da Terra", enfim, foi uma novela estranha. Tratou de temas importantes com muita delicadeza e inteligência, mas não conseguiu amarrar tantos fios em torno de uma história bem estruturada. Creio que será lembrada como uma novela que poderia ter sido muito melhor do que foi.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.