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Mário Lúcio Vaz criou a figura do “showrunner” muito antes de virar moda

Mauricio Stycer

23/07/2019 05h01

Mário Lúcio Vaz, ex-executivo da Globo, morto aos 86 anos (foto: acervo pessoal)

Um dos principais executivos da Globo no período em que a emissora foi comandada por Boni, Mário Lúcio Vaz morreu neste domingo (21) aos 86 anos. Por causa de seu perfil discreto, muitos não sabem que ele foi um nome fundamental na consolidação da teledramaturgia da emissora, entre os anos 1970 e 1990. Em comentários no Twitter, o autor de novelas Carlos Lombardi se queixou da pobreza dos obituários de Mário Lúcio publicados na mídia. A meu pedido, Lombardi escreveu, então, o texto abaixo, no qual homenageia o executivo e relembra bastidores de uma época de ouro da Globo.

"Na Globo, ele lançou Glória Perez, Aguinaldo, João Emanuel, Walcyr e eu"

Por Carlos Lombardi

Há as falsas loiras, as falsas magras e os falsos ingênuos. Mário Lúcio Vaz criou pra si um tipo muito peculiar, o falso bronco.

Carregava no sotaque mineiro (que mais tarde descobri que era opcional e não item obrigatório), fazia cara de quem ou não estava entendendo ou admirando muito o que você dizia. Por um tempo até pensei, nossa, um cara mandando na dramaturgia assim… bobo? Logo descobri que o bobo era eu. Mário se fazia de ingênuo e até mesmo despreparado por estratégia e determinação e acabou se revelando uma das pessoas mais inteligentes que conheci na TV.

Um pouco de contexto histórico: ele começou na TV em Minas, foi parar na Globo levado pelo Borjalo (Mauro Borja Lopes) e logo entrou para o grupo próximo ao chefão, o Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, foto ao lado). Dirigiu "Chico City", mas era consultado sobre tudo mais que se fazia na casa. Como sempre foi avesso a mídia e a dar entrevistas, Mário nunca foi assunto constante na imprensa. Era uma escolha sua, na mesma linha do tipo sou-bobinho-nem-sei-como-me-deram esse cargo. Tudo muito bem construído – tão bem construído que vejo os obituários publicados magros e imprecisos. Provavelmente na Globo de hoje muita gente até acredite que Mário Lúcio foi só um coadjuvante. Boa parte por falta de informação, alguns (muito poucos, Mário nunca foi de criar inimigos com facilidade) por preferirem acreditar que ele era só mais um.

Mário Lúcio dirigiu por muito tempo toda a dramaturgia da Globo. Não foram períodos sempre seguidos. Na verdade, Boni, que acreditava em dividir para reinar, sempre estimulou uma certa antipatia (real) que havia entre Mário Lúcio e Daniel Filho (foto ao lado). Fazia com eles rodízio no cargo. Quando achava que um estava se acostumando demais ao poder ou relaxando, trocava pelo outro. Passávamos por alguns poucos anos de Daniel, depois alguns anos de Mário. Nós autores os chamávamos de Marlene e Emilinha, as eternas cantoras rivais da Radio Nacional.

Ambos sabiam fazer o trabalho, mas tinham estilos radicalmente opostos. Daniel, que continuava como diretor de novelas e também era ator, buscava as luzes do palco. Mário preferia a discrição dos bastidores. Daniel gostava de ostentar poder e conhecimento – e ele tinha os dois. Às vezes era brilhante. Às vezes apenas autoritário. Era difícil. Eu também nunca fui um amorzinho, então nem sempre nos entendíamos.

Com Mário era mais fácil. Uma vez expliquei pra um amigo: você entra na sala do Daniel com a ideia de fazer uma novela sobre Fadas e Elfos. Na saída você agradecia a ele por ELE ter tido a ideia de fazer uma novela sobre Fadas e Elfos. Com Mário Lúcio você entrava com essa ideia e na saída ele agradecia porque você teve a brilhante ideia de fazer uma novela sobre mineradores e ladrões de joias. O mineiro era tão hábil que demorava uma meia hora até você perceber que ele mudou tudo o que você queria fazer, mas te fez pensar que a ideia foi sua.

Ele não disputava com nossos egos. Pelo contrário, nos deixava falar, fazia cara de como-você-é-inteligente, tudo que nossos egos às vezes frágeis precisam, mas no fim quem determinava o mapa do percurso era ele. Era quase desprovido de ego. Quase, que ninguém é de ferro.

Foi com ele na chefia que fiz a maior parte dos meus trabalhos. Mesmo que sem perceber, eu fazia parte da turma do Mário – ou seja, quando ele caía do poder e ia para uma salinha ridiculamente pequena, numa caricatura de purgatório na (rua) Lopes Quintas, eu também ficava menos frequente no ar. Ia lá, visitava Mário na sua choupana provisória e ia almoçar com ele e com seu escudeiro Durval Honório (foto)– um dos homens que mais entende de novela que já conheci, também precocemente aposentado por uma Globo que ficou tão grande que às vezes se esquece de pedaços seus largados pelo caminho.

Humberto Martins e Marcello Novaes em "Vira Lata", de Carlos Lombardi

Foi com Mário que fiz também minha novela mais malsucedida – "Vira Lata" (1996). E o pior é que ele sabia que não ia dar certo. Achava que eu não tinha construído bem a protagonista e que não deveria ter aceito algumas escalações de elenco que me foram impostas. Estava certo. No final do primeiro capítulo, ao qual assisti com a equipe e meu amigo e colaborador Vinícius Vianna, todo mundo aplaudia, Vinícius olhou pra mim e perguntou o que foi, a novela foi ótima. Lembro que só respondi ótima o #$&*@, fodeu. Penei. Só consegui virar a novela lá pelo capítulo 60. Depois de tudo perguntei pro Mário porque ele deixou a novela sair se achava que havia tantos erros. Ele disse que eu precisava de um fracasso para crescer. O fracasso ensina mais que o sucesso. "E de lambuja você aprendeu a consertar uma novela no meio". Depois disso, virei o homem da caixa de ferramentas dele por uns 15 anos, chegando a assumir duas novelas de outros autores para consertos e funilaria em geral.

Mário, fazendo o matuto, sabia ser ousado. Foi a primeira pessoa a aprovar "O Quinto dos Infernos" (2002) numa Globo insegura, vivendo pela primeira vez sem o Boni. Como sempre, quando dona Marluce (Dias, foto) assumiu, Mário foi esquecido na salinha. Seus escolhidos foram Paulo Ubiratan, Daniel (Filho) e Carlos Manga. Infelizmente, Paulo morreu e, como Roma já havia provado, triunviratos nunca terminam bem. Daniel, ex-assistente de Manga, ganhou a batalha e ficou chefe de novo. Mas o temperamento dele definitivamente não combinou com o dela e eis que de repente quem sai do borralho? Mário Lúcio, nosso modesto herói.

Ana Paula Arósio e Thiago Lacerda em "Terra Nostra", de Benedito Ruy Barbosa

Marluce confiou em Mário e acabaram se dando muito bem. Sempre faço questão de dizer que a Marluce que entrou na Globo sabia pouco de TV. Mas ela aprendeu muito. Marluce era muito inteligente e ávida por conhecimento. Mário também gostava de ter alguém de temperamento forte para exercer o poder final enquanto ele permanecia discreto reorganizando o departamento. Foi época de grandes sucessos de autores próximos a ele, como "Terra Nostra" (1999-2000) de Benedito (Ruy Barbosa) e minha própria "Uga Uga" (2000-01).

Minha história mais maluca com Mário, porém, foi antes. Em 94 me chamou ao Rio pra ver minha pré-sinopse de novela (estranhei, era coisa para estrear em maio do ano que vem). Era um texto curto, um fiapo de duas histórias centrais que se cruzavam. Mais contei do que ele leu. Mário me mandou falar com Homero Icaza Sanchez dizendo que o Bruxo das pesquisas (e era mesmo) ia me falar sobre as telespectadoras que naquele momento eram o público-alvo. Conversa ótima, ele me deu dados para rechear minhas quatro mulheres principais. Passei pela sala do Mário na volta:

– Tchau, Mário, vou pra Sampa.
– E vê se escreve logo.
– A sinopse, né? Afinal isso aqui é só um esboço.
– Não, os capítulos. A novela estreia em 56 dias.

Quase caí duro. Falei impossível uma dezena de vezes, falei que era abuso, ou seja, fui o chato que sempre sou quando sou pego de surpresa. Mário esperou meu fôlego acabar e disse tranquilo.

– Estréia em 56 dias. E sei que estreia porque você é maluco e vai escrever e o Ricardo Waddington é maluco e vai dirigir. Vocês vão enlouquecer a Globo inteira, vão exigir todos os cenários e todos os elencos mas vão botar no ar.

A novela estreou na data prevista.

Leticia Spiller, Marcello Novaes e Betty Lago em "Quatro por Quatro"

A novela se chamou "Quatro por Quatro" (1994-95) e, modestamente, foi um arraso. Mário só me contou uma mentira nisso tudo. Disse que como a encomenda era de supetão a novela ia ser mais curta. Em vez de 150 seriam uns 120 capítulos. Acabaram sendo 233. A segunda novela mais comprida da Globo (a cores), só atrás de "Barriga de Aluguel" (1990-91) de minha amiga Glória (Perez).

Para mim pessoalmente a Globo ficou mais triste em 2008 quando Mário se desentendeu com Otávio Florisbal e foi defenestrado. Eu já esperava algo assim, era evidente que os dois não se combinavam. Pessoalmente acho que a Globo perdeu muito tanto de graça como de ousadia.

Afinal, o mineirinho discreto, sempre vestido de branco por promessa religiosa, era mais ousado do que ele queria que percebessem. Ele lançou muita gente na Globo: Glória Perez (com Mário Lúcio na foto), Aguinaldo Silva, João Emanuel Carneiro, Walcyr Carrasco e eu.

O que de melhor ele deixou foi a valorização da figura do autor. Ele sempre disse que tudo numa novela pode dar errado que se dava um jeito. Menos a história. Até tinha como se consertar, mas a marca do remendo era mais evidente. Foi num dos seus períodos de poder que se normatizou que o nome do autor seria sempre o primeiro numa abertura de novela, com o crédito novela de.

A TV brasileira às vezes tem momentos de cinema francês, em que o diretor é a figura mais importante, oscila entre seu amor e ódio pelos autores – que são os donos do futuro para toda a equipe, cast, público, já que inventamos a história enquanto ela é apresentada. Mário uma vez me repreendeu por eu não ter pedido pra regravarem coisas que vi que estavam erradas num trabalho meu. Eu falei que o povo do Projac já achava que eu me metia demais. Mário foi duro: " Quando não der Ibope, ninguém vai lembrar ah, como ele ficou bem no canto dele. Só vão dizer que a novela é uma merda. E nessas horas, a culpa é só do autor".

Ele criou o showrunner antes do nome virar moda a partir da TV americana. Afinal, autores de novela não são poetas que contam uma "Ilíada", mas gente com planilhas com números de cenários que cabem no estúdio, que podem aumentar ou diminuir o custo de um produto ao sabor de sua imaginação e que devem modular sua história ao sabor das paixões e ódios do público. Um pouco dessa magia foi embora quando Mário foi aposentado. Ele fez falta nos últimos dez anos. Agora vai fazer falta pra sempre.

P.S. Como escrevi com pressa e emocionado, cometi omissões importantes. Também foram lançados pelo Mário como autores de novela Miguel Falabella, Duca Rachid e Thelma Guedes, Alcides Nogueira e Emanuel Jacobina.

*Carlos Lombardi é autor de novelas e séries. Trabalhou na Globo entre 1981 e 2010.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

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