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TV exibe filme sobre fazenda nazista em SP que escravizou meninos negros

Mauricio Stycer

02/09/2017 05h01


No início dos anos 1930, um orfanato no Rio de Janeiro entregou 50 meninos negros a um homem rico e poderoso. As crianças foram levadas para uma fazenda em Campina do Monte Alegre (SP), onde viveram em regime de escravidão por dez anos.

Integrantes da família Rocha Miranda, donos da fazenda, eram militantes da Ação Integralista, o movimento político com simpatia pelo nazismo e o fascismo. Na fazenda, havia tijolos com a suástica gravada e, reza a lenda, os bois e cavalos também eram marcados com este símbolo nazista.

O documentário "Menino 23", que o canal pago GloboNews exibe neste sábado (02), às 20h30, conta uma parte desta história. Com direção de Belisario Franca, baseado em uma tese de doutorado de Sidney Aguilar Filho, que investigou originalmente o tema, o filme localiza dois dos garotos que foram enviados para a fazenda na década de 30 e os parentes de um terceiro.

Aluizio Silva (imagem no alto) é o "menino 23" – eles eram chamados pelo número que ganharam na fazenda. Morreu em 2015, aos 93 anos, depois de contar, emocionado, a sua história. É sobre ele que o diretor do filme escreve, em texto inédito, publicado abaixo. Vale a leitura e, muito mais ainda, ver o documentário.

"Minha infância foi roubada"

Por Belisário Franca

A primeira vez que encontrei Seu Aluizio Silva para filmar foi em agosto de 2011. Ele tinha então 89 anos de idade, 80 anos vividos na cidade de Campina de Monte Alegre no interior de São Paulo. Seu Aluizo foi um dos 50 meninos órfãos e negros que foram retirados em 1933, do Orfanato Romão Duarte no Rio de Janeiro, para a Fazenda Santa Albertina na região de Paranapanema.

A fazenda pertencia a uma família que tinha membros da cúpula Integralista com forte aderência ao nazismo que existia no Brasil daquela época. Esse grupo de meninos trabalhou em regime análogo à escravidão – sem direito a educação nem salário, sujeitos a castigos físicos – até 1942, quando foram liberados e , na prática, expulsos da propriedade, sem dispor de recursos materiais e após anos de pouquíssima interação social com as pequenas cidades vizinhas.

Na fazenda, cada um foi numerado e daí para frente chamado por seu número. Seu Aluizio era o 23, personagem principal do documentário "Menino 23". Ele sobreviveu a duras penas sem nunca ter saído da região. Revoltado com seu destino desde sempre, teve força e coragem de ser o primeiro a revelar o que aconteceu com o grupo após saírem do orfanato.

Na segunda vez que o encontramos, convidei Seu Aluizio para voltar ao Rio de Janeiro e visitar o orfanato Romão Duarte. "Posso levar minha neta e meu neto?". Claro que sim.

Ele pegou um avião pela primeira vez, viu do alto a cidade onde nasceu, sorriu quando passamos ao lado do Cristo Redentor e também reconheceu a praia do Flamengo que frequentou na infância.

No dia seguinte pela manhã, estava animado e elegante. Estreava roupas novas e sapatos para um encontro com suas memórias cariocas.

Enquanto subia as escadas imponentes de acesso ao orfanato, seu rosto foi assumindo uma expressão grave, concentrada. O olhar passeava pelos detalhes do prédio. Os passos eram lentos. Um silêncio se impôs à equipe. Podíamos quase tocar as lembranças enterradas há mais de 80 anos em cada cômodo e que agora vinham à tona, tomando, dominando, embargando Seu Aluizio.

Não eram memórias agradáveis. O grande quarto coletivo estava vazio naquele momento, fileiras de camas arrumadas, vozes de crianças ao fundo, em outro andar do prédio. O ar parou quando Seu Aluzio entrou.

Ele titubeava quanto a que direção seguir. Resolveu sair pelos fundos. No pátio interno – o recreio para as crianças do orfanato – Seu Aluizio sorriu tristemente. "Nossa vida era brincar de bola de gude, patinete…" Quando ele reviu o passadiço que liga o prédio ao Morro Azul, ele começou a falar. Com dor e emoção.

"Jogaram balas [dali] para os meninos pegar, e escolhiam os mais rápidos. Era o mesmo que um gado. Fomos separados dos outros meninos." Andando em direção aos cantos, continuava: "Nós nem sabíamos onde era São Paulo." E depois, "A gente só pensava em fugir. Fugir."

E finalmente numa pausa, o desabafo duro, "Minha infância foi roubada."

Naquele momento testemunhamos aquela história escandalosa de manipulação de uma infância desassistida e os maus tratos que viveram depois da saída do orfanato ganhar vida novamente na voz de Seu Aluizio. A História com H maiúsculo muitas vezes distante – Vargas, o Integralismo, eugenia, elites racistas – virando carne ali de novo, registrada pelo seu impacto inexorável na vida de Seu Aluízio. E de quantos outros?

Ficamos ali atentos, a câmera reverente testemunhando a história ganhar matéria, a memória virar filme.

Abaixo, um trecho do "making of" do documentário, que mostra Seu Aloisio assistindo, pela primeira vez, a trechos do filme:

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.