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Montagner: pinta de galã, postura de herói, mas talento para fugir do óbvio

UOL Interação

16/09/2016 10h26

Domingos Montagner

Que tragédia… Que tristeza… Não consigo pensar em outras palavras ao ler sobre a morte de Domingos Montagner.

"Velho Chico" perde o seu protagonista, afogado no rio São Francisco, a duas semanas do último capítulo. É uma ironia amarga. Justo uma novela que nasceu do desejo do autor, Benedito Ruy Barbosa, de mostrar o (mau) estado deste mesmo rio.

Santo dos Anjos foi um típico personagem de Montagner na TV. Um homem do bem, mas não muito simples de entender. E aí está um dos seus grandes méritos — por conta do tipo físico e da grande expressividade, o ator parecia inspirar tipos assim.

Santo era um homem destemido, que jamais olhava para o chão ao enfrentar o coronel Saruê (Antonio Fagundes) e seus asseclas. Liderava uma cooperativa de agricultores de "oposição", com a promessa de libertá-los do jugo da velha economia. Mesmo sem estar convencido, aceitou a proposta dos filhos para investir em técnicas mais sustentáveis.

O herói também esbanjava afeto. Tinha uma relação linda de irmão mais velho com Bento (Irandhir Santos), bem como de primogênito da mãe-coragem Piedade (Zezita Matos) e como pai de duas meninas. Nunca foi apaixonado pela mulher, Luzia (Lucy Alves), mas sempre demonstrou carinho por ela. Ao descobrir que Miguel (Gabriel Leone) era seu filho, chorou. Ao reencontrar o amor de sua vida, Tereza (Camila Pitanga) chegou ao êxtase.

Com sua pinta de galã, postura de herói, mas capacidade de expressar sentimentos muito além dos óbvios, Montagner inspirou outros tipos memoráveis na TV.

Não chegou a viver um antiherói ou um vilão, mas parecia atrair papeis excelentes e ofereceu grandes interpretações em novelas e minisséries que exigiam algo a mais de seus protagonistas.

Desde a estreia em novelas, como o coronel Herculano na excelente "Cordel Encantado" (2011), Montagner parecia destinado a associar o seu nome a produções de qualidade ("Salve Jorge" é a exceção que confirma a regra).

Em "O Brado Retumbante" viveu Paulo Ventura, um deputado incorruptível que vira presidente por acaso. Foi Mundo, o líder sindical idealista em "Jóia Rara" (2013). Interpretou Miguel, o homem atormentado, pai de sete filhos, na ótima "Sete Vidas" (2014). E foi o delegado gente boa e sedutor em "Romance Policial – Espinoza" (2015).

Esta morte trágica interrompe uma carreira de alto nível e deixa órfãos os fãs de uma das melhores novelas dos últimos anos. Triste demais.

Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.