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Adulta, “A Regra do Jogo” reflete desencanto com a situação do país

Mauricio Stycer

22/09/2015 05h01


Depois de três semanas, é possível observar que "A Regra do Jogo" guarda duas semelhanças importantes com "Avenida Brasil" – a capacidade de produzir excelente entretenimento bem como a de capturar o espírito do seu tempo.

João Emanuel Carneiro foi muito perspicaz em 2012. Enquanto o país vivia um importante momento de mobilidade social, com a ascensão da classe C ao mercado de consumo, ele criou uma história que agradou em cheio a diferentes públicos e classes.

A novela se passava num bairro fictício, o Divino (olha o nome), uma espécie de Madureira desidratado – sem conflitos sociais, diversidade racial, tráfico de drogas ou problemas de saneamento básico e habitação comuns em lugares como esse. Mais radical ainda, o autor propôs que o protagonista, Tufão (Murilo Benício), um ex-jogador de futebol bem-sucedido, preferisse morar no bairro em que nasceu do que migrar, como seria de se esperar, para a mais abastada zona sul da cidade.

Olhando para trás, me parece fazer sentido entender "Avenida Brasil" como um sonho, uma fantasia, sobre um Brasil que seria capaz de resolver os seus problemas com trabalho honesto, dedicação às raízes e muito baile charme.

aregradojogoorlandoromuloTrês anos depois, Carneiro opta por uma história realista até a medula, sobre como uma facção criminosa se entranhou na sociedade, com ramificações em todas as classes sociais. "A Regra do Jogo" é uma novela de raiz policial, que reflete, ao menos até o momento, um grande desencanto do autor com a situação da sua cidade, o Rio de Janeiro, e, em última instância, do país.

Desculpe a sociologia de botequim, mas não consigo deixar de pensar na guinada de humor que o novo folhetim reflete. A visão proposta em "A Regra do Jogo" vai ao encontro, novamente, do que os espectadores de diferentes classes sociais estão sentindo em relação ao país.

Como disse Carneiro em uma entrevista à "Folha" antes da estreia: "Me fascina o caráter das pessoas. Até que ponto elas podem ir, se redimir. (O dramaturgo Bertolt) Brecht falava que quem tem fome não pode ter moral. Nós brasileiros somos coluna do meio muitas vezes, perdoamos muito."

Outro mérito do autor é construir uma história intrigante, com um protagonista ambíguo e aparentemente amoral. Com sua ONG em defesa de pessoas presas injustamente, que serve de fachada para acobertar graves crimes, Romero Rômulo (Alexandre Nero) tem tudo para entrar na galeria de grandes personagens das novelas brasileiras.

Diferentemente de "Avenida Brasil", muito mais fácil e digerível, "A Regra do Jogo" tem se mostrado, até agora, uma novela que exige atenção e reflexão do espectador. É sempre uma aposta de risco propor ao público uma história adulta, com temas pesados, em um momento difícil.

aregradojogoadisabebaNão apenas concordo como acho elogiável ouvir Carneiro falar do respeito que tem pelo espectador: "O público é mais inteligente do que a gente imagina. Menosprezá-lo é o maior erro. É como uma criança: se você levá-la ao Museu do Prado (em Madri), ela vai adorar aquelas pinturas. Se só leva ao parque de diversão, só vai conhecer aquilo".

Dois núcleos cômicos, o da família de Feliciano (Marcos Caruso) e o de Adisabeba (Susana Vieira), procuram dar alívio a um trama repleta de situações altamente dramáticas. Nenhum dos dois é muito original (a família decadente e a rainha da favela), mas o texto de ambos é muito bom e frequentemente faz rir.

Principal produto da Globo, a novela das 21h não pode ser observada sem um acompanhamento de sua audiência. Por conta do sucesso de "Os Dez Mandamentos", porém, tenho a impressão que esta preocupação com os números ocupou um lugar excessivo. A novela bíblica da Record, na minha opinião, atrapalharia qualquer novela da Globo, boa ou ruim, que estreasse neste momento.

Estou gostando bastante de "A Regra do Jogo" e espero que a novela siga o rumo imaginado pelo autor. A trajetória errática de "Babilônia" mostrou a falácia que é acreditar cegamente em "grupos de discussão" e em mudanças drásticas no enredo. Espero que não se cometa novamente o absurdo de ofender a inteligência do público por causa de um problema de grade ou de audiência.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.