Topo

Candidato descreve como é a seletiva para participar do “BBB16”

Mauricio Stycer

18/09/2015 05h01

leonardovinhasO jornalista Leonardo Vinhas estava folheando um gibi em uma livraria em Curitiba quando foi abordado por uma mulher encarregada de selecionar possíveis participantes para o "BBB16". Depois de ouvir as explicações da "olheira", Vinhas aceitou a proposta e foi convocado a disputar uma prova seletiva.

Rico em detalhes, o seu relato descreve as dinâmicas de grupo a que se submeteu, junto com duas dezenas de pessoas. Numa delas, a turma precisava decidir quem era o culpado no caso do assassinato de uma mulher que morreu ao supostamente trair o marido com outro – vários consideraram que a culpa pelo crime foi dela.

Vinhas conta, ainda, que teve que preencher uma ficha com quase 100 perguntas sobre ele e sua família, além de ter feito uma entrevista em vídeo na qual foi questionado se tinha medo de que algum "podre" fosse surgir se aparecesse na TV em rede nacional.

Muito bem escrito e com ótimo humor, o relato "Minha vida como ex-futuro BBB" pode ser lido no blog de Vinhas (aqui) ou na transcrição abaixo. É um texto longo, mas que vale a pena. Recomendo.

MINHA VIDA COMO EX-FUTURO BBB

A vida, amiguinhos, essa imitação de segunda categoria da ficção, teima em acontecer. E como já diz o clichê, tende a ser mais estranha que a própria ficção. A seguinte história comprova isso.

Começa numa terça-feira de noite, em uma livraria de um shopping em Curitiba – dessas livrarias que desafiam o capitalismo e deixam você ler os livros sem ter que pagar um centavo por isso. O tipo de lugar frequentado por hipsters, blasês, leitores e gente sem dinheiro sobrando. Eu me encaixo em dois desses grupos, tente adivinhar quais.

Sentado num banco isolado, me dedicava a um prazer culpado (leitura de gibi merda dos Vingadores), crente de que ninguém repararia em um homem alto, pálido, de cabelo enrolado, peitoral de nadador e perninha de grilo, vestido em trajes sociais enquanto lê um gibi de super-heróis. Mas alguém reparou. Uma mulher. Do tipo "bonita". E ainda sorria para mim.

Ela, então, revelou suas intenções. Não, jovens, não era, como deseja a imaginação de vocês, se submeter alegremente à minha lascívia ilimitada, destruindo meu casamento e algumas partes sensíveis do meu corpo. A proposta era mais perniciosa. Ela me convidou para uma seletiva do maior reality show da TV brasileira.

Sim, a moça me convidou para participar de uma seleção para compor o elenco do Big Brother Brasil. Depois das precauções que um jornalista experiente como eu tem que tomar para se certificar que ela falava sério (pedir crachá da Globo, identidade, teste de bafômetro etc), ela chamou uma outra colega de trabalho, e ambas passaram a me explicar o processo.

Depois de uns dez minutos de uma charla mui profissional, as moças – gentis, respeitosas e profissionais, ou seja, as melhores para aliciar incautos – me perguntaram o que eu achava da ideia. E fui forçado a fazer o que vinha evitando nesses mesmos dez minutos: encarar o assunto com seriedade.

Uma piada recorrente em minha casa sempre foi pensar o que rolaria se eu ou minha esposa fôssemos para lá. "Você não ia durar uma semana ali dentro", era a opinião dela sobre mim, a qual encontrava total concordância. Quando não era "não vão nem esperar o paredão para tirar você dali". Meu temperamento pouco afeito à convivência diária, minhas manias esdrúxulas, minhas imprecações anti-tudo e meu sotaque esquisito levavam a acreditar nisso.

Enfim, repetíamos esse papo duas ou três vezes, e pronto, esse era todo o envolvimento da nossa casa com o BBB. Só que agora alguém esfregava na minha cara que eu podia, talvez, me tornar um daqueles objetos de fetiche voyeurista de amor e ódio que passa quatro meses se submetendo ao ridículo, à hiperexposição e ao risco de destruir a carreira profissional e as relações familiares, para enfim ganhar uma grana que vai atrair sanguessugas, bandidos, aproveitadores, e bajuladores dos mais variados tipos.

Então, pensei um pouco, bem pouco. Quase nada, na verdade. E disse não.

Ahn… não foi bem assim.

Pensei bem, sim. Na verdade, pensei tanto que não soube nem o que dizer. Então as moças pediram meu telefone e disseram que entrariam em contato, me dando tempo para pensar, falar com a família etc. A primeira providência, claro, foi sair da Livraria (quem conseguia ler qualquer coisa, mesmo um gibi escrito pelo Brian Michael Bendis, depois dessa?) e ligar para a esposa. Que, para minha eterna surpresa, disse que eu tinha mais era que ir mesmo.

O casal de amigos com quem moro…

(OK, você está tentando entender. O cara é casado, mas mora… com outro casal? Não vou tentar te explicar. Mas é assim que era, quando rolou o convite)

Retomando: chego na casa em que estou dividindo com o casal de amigos, e eles me dizem: "vai nessa!". Me deram – eles e minha esposa – motivos para ir. Especificamente, um motivo. "Você pode ter sobre o que escrever". E queridos, eu consegui muito mais assunto do que poderia imaginar.

Depois do estupendo início dessa aventura, e das inevitáveis ponderações, o passo lógico seria ir à tal seletiva. Calhou que o destino, piadista como é, a tivesse programado para um dia no qual eu havia pedido folga para, enfim, voltar à minha casa em outra cidade e outro estado. Me encaminhei, então, ao hotel onde rolaria a seletiva, ainda relutante em participar daquilo tudo.

Já perto do hotel, avisto pessoas enfileiradas no estacionamento, e cada qual a seu modo seguia o conselho da produtora (ou da carta-convite): "venha bonito". Pena que isso significa coisas tão diferentes para as pessoas: no caso de algumas, isso significava vestidos tubinho de rosa-choque, no caso de outras e outros, calças e camisas/tops que só seriam removidos cirurgicamente, não sem perda considerável de pele. Todos perfilavam-se para serem filmados. Parecia uma "cena de TV" conforme encenada num filme proibido do John Waters. Era muita caricatura de "gente comum" em um lugar só, e achei que já tinha dado para mim. Fui embora para a rodoviária. Só pararia para uma média com pão e manteiga antes, necessárias para encarar as quatro horas de busão.

Justo nessa hora liga a produtora. E se alguém merece o salário que a Globo paga é essa guria. A diaba é angelicalmente persuasiva. E com viagem marcada e tudo, ela me colocou lá pra tal seletiva, prometendo antecipar tempos. Mal cheguei, sou lançado aos lobos, ou melhor, aos tais da fila já citada, que agora estavam todos em uma sala ampla do hotel, com um rangunho mequetrefe, uns jogos de tabuleiro (!) e vários observadores querendo ver do que éramos feitos.

"Nossa linda juventude / página de um livro bom"… Lembra dessa música? Em algum momento, o livro ficou ruim, e a página, terrivelmente mal escrita. É verdade que, em um caso ou outro, até bem diagramada, mas certamente muito mal escrita. Alguns tentando forçada e terrivelmente ser simpáticos, tentando puxar conversa das formas mais artificiais possíveis ("gostei do seu estilo", "acho que te vi na noite" etc). No meio desse jardim do mal, eu avisto um cidadão que se parecia com um dos tiozinhos do ZZ Top, só que com indumentária de um daqueles caçadores de pato da TV a cabo. Como já estava constrangido demais de estar ali, decido que alguém que parece com o Dusty Hill (ou seria com o Billy Gibbons?) não pode ser má pessoa, e ficamos conversando.

O papo com o tio durou pouco tempo, pois logo fomos chamados, junto com outros de nossos grupos (recebemos um crachá com números e cores), para uma sala onde ocorreriam dinâmicas de grupos. Éramos 22 pessoas ali – desculpe, 22 numerinhos coloridos, azuis" e "vermelhos". Já não tínhamos mais nome, e sim números. Eu era o 41.

Começaram, então, as dinâmicas. É, amigo, dinâmicas, tão ruins quanto aquelas de seleção de emprego. Piores, eu diria. Porque, salvo exceções, o psicólogo do RH da empresa não tem ojeriza explícita pelos candidatos. Aqui não era o caso. O deboche dava o tom da fala da psicóloga, e a equipe de apoio… Bom, se Satanás é, como reza a tradição, o adversário do homem, a equipe de apoio só pode ser composta por seus agentes mais devotos. Má vontade, enfado, e um sincero desprezo vazava de seus olhos como saliva da boca da serpente antes de oferecer a maçã à Eva (exceção feita à já citada produtora, claro). Deu para lembrar do Sabbath – "War Pigs", manja? Aquele trecho que o Ozzy canta Satan laughs and spreads his wings?

Mas vamos à dinâmica: a tia do mal falava uma frase, e se a sentença não refletisse sua experiência real, você deveria explicar porque. As frases eram desde "eu nunca tive um caso com um colega de trabalho casado" até "eu nunca vi com meus próprios olhos um fantasma, uma assombração ou um ser sobrenatural".

Teve gente dessa juventude informada e universitária que jurou de pés juntos que viu fantasma, assombração ou ser sobrenatural. Serião.

E nem vou falar dos que foram obrigados a esmiuçar a vergonha (ou no caso de alguns, a falta de vergonha) em ter sua intimidade esmiuçada na frente de todo mundo. Pensei em sair dali, mas uma parte de mim queria muito ver aonde aquilo ia dar.

Fomos então divididos em dois grupos de 11 pessoas, e tivemos que discutir um caso: ocorrera um assassinato, havia seis personagens na história, e nossa obrigação era determinar o "grau de culpabilidade" de cada um deles. Vou te poupar da história e ir até o final: a maioria (adivinhe quem foi a única exceção?) decidiu que ninguém era mais culpado que a vítima.

Pois é. Porque a vítima era uma mulher casada que saíra de casa para talvez ter um caso extraconjugal. "Se ela ficasse em casa esperando o marido, nada disso teria ocorrido". Outros disseram que o mais culpado era o marido, pois "se ele tivesse dado mais atenção para ela, ela não teria motivo para sair de casa". O Billy Gibbons (ou seria o Dusty Hill?) chegou a dizer que "o bandido fez o papel dele, que é matar. A culpada é a mulher!". Minha cara de perplexidade levou a tia do mal a perguntar: "41, você está confortável com a decisão?"

Não, o 41 não estava satisfeito.

E expliquei, num tom de voz meio alterado, que não conseguia acreditar que eu, homem bronco do interior, era menos machista que as mulheres ali presentes. Que não conseguia acreditar que um juízo sobre a intimidade sexual de alguém determinava se a pessoa "merecia" morrer. Que não faz muito tinha gente falando de relações extraconjugais de forma aberta e até orgulhosa, e agora esse mesmo pessoal – friso, mulheres na enorme maioria – diziam que quem "apronta" tem mais é que morrer.

Perguntei, para ninguém em especial: "então quer dizer que se uma mulher está com roupas insinuantes e é violentada, ela pediu por isso?"

Duas mulheres disseram que não. Todas as outras disseram que sim. Veementemente.

A discussão que se seguiu foi um choque de realidade para mim. Vi de perto a cara do Brasil que defende que "bandido bom é bandido morto", mas não se acha bandido quando dirige embriagado, sonega impostos ou superfatura notas fiscais no trabalho. O Brasil que abomina maconheiro mas se entope de álcool vagabundo no churrasco e balinha na balada. O Brasil que acha que pobre é bandido, mesmo quando é pobre. O Brasil que acredita em Deus e acha que ateu é raça ruim, mas acha que vale matar em nome da manutenção dos "bons valores".

Fiquei sinceramente deprimido, e nesse estado participei dos processos seguintes: o preenchimento de uma ficha gigantesca (quase 100 questões) que pedia detalhes de todo o tipo sobre mim e minha família (me permiti não informar vários deles). Também uma entrevista em vídeo onde perguntaram desde o porquê de cada uma das minhas tatuagens até se eu tinha medo de que algum "podre" fosse surgir se eu aparecesse na TV em rede nacional. Uma sala de espera onde umas candidatas metidas a pin up sonhavam em se embebedar na casa do Big Brother, outras que discutiam se demorariam a conseguir bons cachês para posarem nuas. E por fim, uma última entrevista, onde me perguntaram o que eu achava da "minha geração", e o que um cara da "minha geração" poderia levar ao BBB.

Rapaz…

Eu ainda não achei a resposta satisfatória para essas perguntas. Embora eu fosse um tanto mais velho (36) do que a média ali (20 e poucos), eu reconhecia naquelas pessoas a última geração de alunos para os quais lecionei – e que me fizeram desistir de ser professor, porque eu não conseguia me comunicar com eles. Via os valores que estavam vindo com eles, e não gostava de jeito nenhum. Minha geração, pensei, é desprovida de ideias, de definições – eternos adolescentes em conflitos com a adultescência. E essa geração é cheia de certezas – as mais violentas e perigosas. A geração que tem tudo e quer mais, tem tudo e sabe de nada, tem tudo e faz pouco. A geração do "ei, mãe, eu tenho um iPhone, um carro tunado, um potão de Whey, um diploma de uma faculdade qualquer, uma garrafa de Red Label e várias latas de energético. Durante muito tempo isso foi só o que eu queria ter, e você deu tudo, e eu quero mais, e vou ganhar, porque eu mereço". Essas pessoas estarão na TV. E infelizmente estarão na vida real também, aquela "fora da casa".

Eu me contento com a vida de ex-futuro BBB. Não terei minha intimidade vasculhada, os podres levados a público, a privacidade perdida, minhas pequenezas manipuladas para me transformar num personagem conveniente à narrativa. Perderei a chance de fazer ensaio pro Paparazzo, de entrar em depressão porque "ninguém me reconhece" – ou porque todo mundo me reconhece quando só quero sossego. Ficarei distante de insegurança que é ficar milionário em rede nacional e perder a noção de quem é interesseiro e quem é real, de sofrer a adulação de "amigos" de última hora. Serei privado de ser visto, para sempre, como "ex-BBB", apagando tudo que construí em 20 anos trabalhando (comecei cedo).

Enfim… Serei privado disso tudo (serei mesmo, pois escrever este texto já anula minha possível participação). Aleluia! A vida continua, mesmo mais estranha que a ficção. A vida segue, comigo fazendo umas cagadas e acertando uns arremessos de três pontos. Porque é assim que as coisas são. A diferença é que não vai haver uma lupa gigantesca apontada para minhas miudezas.

A única coisa da qual não serei privado de conviver com aquelas pessoas que vi na dinâmica. O Brasil de verdade. O Brasil que caga opiniões mas não engole argumentos. Que faz muito barulho para enaltecer sua falta de conteúdo. Pra escapar do BBB, foi só dizer "não" na seletiva, e quando estiver no ar, desligarei a TV, mudarei de canal, enfim… será só ignorar.. Mas dessas pessoas que estão por aí não há como escapar.

Foto no alto do texto: Lidiane Scheid/divulgação

O blog está no Twitter e no Facebook.

Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.