Diretor explica por que terceira reprise de “Rei do Gado” faz tanto sucesso
Exibida entre junho de 1996 e fevereiro de 1997, "O Rei do Gado" foi reapresentada no "Vale a Pena Ver de Novo" em 1999 e no canal Viva em 2011. Nada disso impediu que, em sua terceira reprise, agora em 2015, a novela voltasse a ser um fenômeno de audiência.
A trama de Benedito Ruy Barbosa, exibida no meio da tarde, tem registrado números no Ibope eventualmente mais elevados do que "Malhação" e "Boogie Oogie", a novela das 18h. Como registrou a coluna "Outro Canal", na "Folha", o sucesso levou a Globo a aumentar o espaço dedicado à reprise em sua grade, espremendo os filmes da "Sessão da Tarde" e o "Vídeo Show", que ficaram menores.
O UOL convidou o diretor da novela, Luiz Fernando Carvalho, a tentar explicar este sucesso. Carvalho já havia dirigido "Renascer" (1993), do mesmo autor. Em 2014, voltou a trabalhar em parceria com Benedito, na recriação de "Meu Pedacinho de Chão".
Diretor de inúmeros trabalhos marcantes na TV, como as séries "Os Maias", "Hoje É Dia de Maria", "Subúrbia", entre outras, Carvalho (ao lado) no momento se dedica em Manaus à gravação de "Dois Irmãos", minissérie baseada no romance de Milton Hatoum. Abaixo, suas respostas sobre "O Rei do Gado".
Você está revendo "O Rei do Gado"? O que está achando?
Luiz Fernando Carvalho – Estou gravando a minissérie "Dois Irmãos", então revejo apenas partes dos episódios quando muito. Lamento que enredos e universos como os desta novela tenham se tornado tão raros na televisão. Benedito, juntamente com Dias Gomes, talvez sejam os autores que mais se voltaram para o Brasil profundo, o mundo rural e seus desdobramentos sociais. Sem falar de uma certa atmosfera de saga que suas histórias sempre cultivaram.
Então, como um clássico, considero importante reprisar para que as gerações mais novas – tanto de autores quanto a de diretores – percebam o quanto aquela narrativa profundamente lírica faz parte do imaginário que povoa nosso país. Se seus textos sempre foram um generoso trampolim para alçar a imaginação dos artistas que sobre eles se debruçaram, acredito que o mesmo se deu com a imaginação daqueles que os assistiram. "Renascer" e "O Rei do Gado" foram um deleite para mim, espécie de escola, aquele território onde você podia se lançar com segurança que colhia sempre uma lição emocionante sobre como narrar uma história.
Quais são as qualidades principais desta novela?
Brasilidade + Realismo + Emoção. O texto trabalha sobre estas linhas o tempo todo. Isso não é pouco. São passos que precisam ser revisitados por todos nós, e que nos foram roubados pelo acúmulo das repetições e o excesso da tecnologia. Tecnologia é bom e eu gosto. Hoje a tecnologia está em tudo: na forma com que os autores escrevem, que a câmera registra, que os atores se colocam em cena; enfim, tudo a nossa volta se resume a um enorme conjunto de tecnologias. Mas se a tecnologia te domina, você morre, não fazendo o menor sentido você estar ali, qualquer outro poderia estar, ela te anula.
Naquele tempo não havia marcação de luz, era preciso criar a luz no set. E a luz deveria representar simplesmente a realidade e não ficar imitando filme de ação americano, esfriando a imagem ao ponto de deslocá-la do real, afastando a emotividade de um melodrama em troca de uma cor da moda. Se o figurino não estivesse na textura certa, dentro das coordenadas de cada personagem, não havia pós produção para "afinar" tudo. Tudo deveria dialogar diretamente com as emoções do texto que, diga-se de passagem, eram muitas! Esse exercício da construção do real é, no meu modo de sentir, a maior qualidade desta e de qualquer grande novela. É uma qualidade que parte do texto, mas circula por todos os departamentos da produção com o forte propósito de reafirmar a síntese ficcional do autor. "O Rei do Gado" era isso.
Depois de poucas semanas, já é possível dizer que a reprise de O Rei do Gado é um sucesso de audiência. O que esses números do Ibope expressam, na sua opinião?
Expressam excelência. Expressam também autoria. Benedito faz parte daquela família de autores que escrevem sozinhos porque necessitam contar uma determinada história. Uma história que passa por ele e por mais ninguém. Se o autor é movido pela necessidade de contar sua história, encontrará, na grande maioria das vezes, as coordenadas certas para que muitos a escutem.
Em uma entrevista ao UOL, falando sobre "Meu Pedacinho de Chão", você disse: "É preciso renovar mais e copiar menos". O sucesso da reprise de "O Rei do Gado" não pode estar sinalizando algo em outra direção, de que o público prefere mesmo rever um novelão clássico?
Colocadas lado a lado com outras narrativas daquela época, "O Rei do Gado" representou sim um grande passo de inovação ético e estético. Em sua primeira fase contou-se uma história com apenas oito personagens, incluindo, entre eles, grandes lançamentos como Caco Ciocler e Marcelo Antony. Era um Shakespeare, ok, mas era um texto que se misturava e livremente se transformava nas memórias do próprio autor: pés de café, convocação do filho para segunda guerra, shindo renmei, etc…
As cenas foram totalmente gravadas em locações como tentativa de humanizar a narrativa, já naquela época bastante contaminada por um modelo único. O texto trazia núcleo de personagens que traçava forte paralelo com a realidade do país, como foram os sem-terra. Enfim, a novela não era cópia de nenhuma outra, foi totalmente inventada pelo Benedito e por mim.
Tudo muito simples, nada que qualquer um dos romances do final do século XIX já não tivesse proposto. Lembro-me como se fosse hoje o dia em que nos encontramos para falarmos dos personagens. Na história havia uma andarilha, um personagem desgarrado, sem rumo. Nos viramos um para o outro indagando se aquilo era verdadeiro e forte o suficiente. Poderia até ser forte para um velho novelão, mas não mais para o que estávamos buscando. Não demorou muito para que o telefone do escritório tocasse com alguém do outro lado querendo saber que história era aquela de incluirmos os sem-terra na novela. Foi assim.
O público prefere uma grande história e bem contada, contextualizada. Não seria isso que eles estão sinalizando? O tema não importa tanto assim, mas que seja contado com sensibilidade e excelência. Nisso se incluiu uma boa dose de desejo. É fundamental que se tenha a necessidade de contá-la, ou é melhor não se aventurar. O público de hoje, expert em dramaturgia, perceberá os pontos fracos de cara, no primeiro capítulo.
É evidente que o paralelo com a realidade tornou-se em si um gênero da ficção moderna. Todos, através dos celulares, temos uma câmera na mão e com isso uma noção de narrativa e verossimilhança. Todos sabemos quando, diante de nós, um sorriso ou uma lágrima que escorre é resultado de emoção ou puro truque. Ninguém mais engana ninguém. O truque dramático, artístico, depende de mestres no ofício, enquanto amadores serão descartados por um vídeo caseiro. Por isso, antes uma boa história de anos atrás do que uma novinha em folha com gosto de café requentado. Dona Maria não engole mais. Que ótimo!
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