Programa de Dercy não era “a cara do Brasil”, mas de uma TV apelativa
Tratado brevemente no último capítulo da minissérie "Dercy de Verdade", de Maria Adelaide Amaral, o afastamento de Dercy Gonçalves da Rede Globo, no início dos anos 70, é um episódio importante na história da emissora e, também, da televisão brasileira.
A pressão da ditadura militar sobre a Globo contribuiu para a saída de Dercy, em 1970, como mostra a minissérie. "Os militares não gostavam de mim", diz ela. "Os militares estão putos com a emissora e querem a tua cabeça também", diz Boni, em outra cena (foto), quando a comunica que seu contrato não seria renovado.
Mas a Globo também tinha interesse em se livrar dela. "Meu programa dá 70 pontos de Ibope", diz Dercy. "Nem se desse 100%", responde Boni. "A Globo não vai mais investir neste tipo de programa" .
Um dos programas de Dercy na Globo, chamado "Dercy de Verdade" (como o título da minissérie), promovia assistencialismo, distribuía muletas e recebia curandeiros, irmãs xifópagas e pessoas com deformidades físicas. "Sabe por que 'Dercy de Verdade' incomoda tanto? Porque é a cara do Brasil", ela diz na minissérie.
Na verdade, Dercy era a cara de uma televisão apelativa, popularesca, de baixa qualidade. Como mostra o livro "História da Televisão no Brasil: do início aos dias de hoje", de Ana Paula Goulart Ribeiro, Igor Sacramento e Marco Roxo, a Globo aproveitou aquele momento, de pressão do governo e da imprensa, para se livrar também de outros nomes "antigos", associados ao universo popularesco, que não combinavam com o seu projeto de modernização e integração nacional.
Em 1971, pressionada por causa de um episódio de baixaria exibido no programa do Chacrinha, a Globo se comprometeu a não explorar, "sob qualquer forma ou pretexto, a miséria, a desgraça, a degradação e a tragédia humanas".
Na ocasião, Boni disse que o acordo com o governo, também assinado pela Tupi, tinha o objetivo de "eliminar os espetáculos de mau gosto".
Além de Dercy, a Globo se livrou, também, de Chacrinha, Jacinto Figueira Junior ("O Homem do Sapato Branco") e Raul Longras, entre outros nomes populares que ocupavam a programação da emissora.
Como mostra o livro, a história da TV no Brasil é uma história de ondas de sensacionalismo e apelação desde os anos 60. Só não houve baixaria na TV na sua primeira década, quando era um bem de consumo da elite. E, curiosamente, o conceito do que é "baixaria" mudou muito pouco nestes 50 anos.
Em tempo: O papel de Boni na minissérie "Dercy de Verdade" foi vivido por seu filho mais novo, Bruno Boni (foto). Ele tem 24 anos, é estudante e diz nao assistir televisão. É tão mau ator que cheguei a pensar, antes de saber do parentesco, que a sua escalação havia sido vingança de alguém da Globo contra Boni.
Em tempo 2: Um comentário meu sobre a minissérie pode ser lido aqui. E uma entrevista com Maria Adelaide Amaral pode ser lida aqui.
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